Cernunnos
é, com toda a probabilidade, a mais antiga divindade de seu panteão. Há
sinais, inclusive, de que ele seja anterior às invasões celtas. Não
podemos esquecer que, se boa parte da Europa foi colonizada por sua
cultura, as zonas por eles controladas já estavam ocupadas por outros
povos com os quais por força tiveram de fundir-se para subsistir, não
havendo motivo para que suas crenças fossem aniquiladas.
Independentemente
de sua origem, Cernunnos, o deus de chifres, desempenha uma função
importante não só por se tratar do Senhor dos Animais — domésticos ou
selvagens —, mas também da Fertilidade e da Abundância — regulando as
colheitas dos grãos e das frutas. Posteriormente, foi considerado também
o deus do dinheiro. Os romanos quiseram identificá-lo com o seu
Dis-Pater, que tinha influência sobre os mortos, apesar de as funções de
Cernunnos não coincidirem por completo.
Sua
primeira representação conhecida está presente em uma gravação sobre
rocha datada do século IV a.e.c. encontrada no norte da Itália. Ali ele
já aparece como um ser de aspecto antropomorfo, dotado de dois chifres
na cabeça e dois torques em cada braço. O torque — uma espécie de colar
torcido com as extremidades em forma de argola — é um atributo de poder e
às vezes de realeza utilizado pelos grandes chefes ou pelos guerreiros
mais destacados para que fossem identificados como mestres na sociedade
celta e devia ser colocado apenas no pescoço ou nos braços: trata-se de
uma série de tiras de metais preciosos entrelaçados em meio a um
charmoso desenho em espiral nas formas de colar e pulseira que não
fechavam.
Ao
lado da imagem de Cernunnos encontrada no norte da Itália estava
desenhada uma serpente — símbolo da fertilidade, do renascimento e da
sabedoria que mais tarde foi satanizado — com cabeça de carneiro e uma
figura com o pênis ereto — concedendo uma idéia de ferocidade. Imagens
similares podem ser encontradas em toda a Europa.
Freqüentemente
é representado acompanhado por animais, principalmente cervos e touros,
que se alimentam de um grande saco que tem em seu poder, ou por
serpentes que se alimentam da fruta oferecida entre suas pernas. Em
algumas ocasiões, aparece sentado na posição de Buda. Encontramos seu
nome escrito em apenas uma ocasião: em um relevo em sua homenagem
elaborado por marinheiros do inicio do século II d.e.c., no qual, além
dos chifres, o deus tem orelhas de cervo.
Sua
imagem mais famosa é a do caldeirão de Gundestrup, um charmoso
recipiente de prata de 36 centímetros de altura utilizado em rituais e
que foi encontrado na Jutlândia, Dinamarca, quebrado em cinco pedaços. A
peça foi reconstituída para que pudesse ser admirada em toda a sua
beleza. Neste caldeirão, Cernunnos senta-se com as pernas cruzadas, com
um torque no pescoço e outro na mão direita e segura uma serpente com a
mão esquerda. Das figuras que o acompanham, destacam-se um cervo de um
lado e o que poderia ser um javali do outro lado. Também aparece um
homem montado em um salmão — o peixe da sabedoria — e dois animais da
mesma espécie que se enfrentam. Outro relevo em pedra — este encontrado
no sudoeste da Inglaterra — o mostra com as pernas formadas por duas
grandes serpentes com cabeça de carneiro sobre algumas bolsas de
dinheiro colocadas ao lado do deus. Em uma moeda de prata inglesa, ele
aparece com uma roda, signo solar, entre os chifres.
Os
deuses com chifres são sempre identificados como entidades de sabedoria
e de poder. Na Antigüidade, tais protuberâncias cefálicas podiam ser
levadas apenas pelos mais viris, e não no sentido em que são entendidas
vulgarmente nos dias de hoje, como indivíduos muito fortes e agressivos,
mas no da própria etimologia latina. Um tipo viril era um homem com
todas as letras, dotado de todas as qualidades presumíveis, mas
demonstradas apenas por indivíduos reais: valor, honra, masculinidade,
entre outros. Os chifres mostravam, além de tudo isso, que esse
individuo desfrutava de sabedoria sobre o mundo.
Um
conto popular gaélico fala sobre viajantes que chegam a uma ilha
misteriosa na qual encontram apetitosas maçãs. Após mordê-las, chifres
crescem em suas testas e eles passam a compreender muitas coisas que
acontecem ao redor do mundo. Uma lenda escocesa afirma que tais chifres
apareciam na cabeça dos melhores guerreiros quando eles se preparavam
para o combate há muito tempo, ainda na “infância” da humanidade. Os
vikings são popularmente mostrados como terríveis piratas que usavam
capacetes com chifres. Porém, eles nunca levavam adornos semelhantes aos
combates, pois isso representaria um grande incômodo se realmente o
fizessem. Na verdade, utilizavam capacetes lisos, quase sem ornamentos,
muito mais práticos. Os capacetes com chifres eram utilizados apenas em
cerimônias religiosas. Uma das famosas esculturas de um dos maiores
artistas de todos os tempos, Michelangelo Buonarrotti, é sua
representação de Moisés. A obra, que data do século XVI, mostra dois
chifres e encontra-se na basílica de São Pedro, em Roma.
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